Universidade de São Paulo Departamento de Psicologia Clínica Círculo fenomenológico da vida e da clínica
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Tradução de entrevista

NOTA: Esta entrevista está em processo de revisão da tradução (Erika Rodrigues Colombo) pelo e para o Círculo Fenomenológico da vida e da clínica, USP, e foi gentilmente cedida pelo Prof. Andrés Antúnez para uso exclusivo dos cursos sobre Fenomenologia da Vida, em Michel Henry, durante o Congresso Internacional de Fenomenologia, Educação e Arte, 22-25 Outubro de 2017, presidido pelo Prof. Gilberto Aparecido Damiano na Universidade Federal de São João del-Rei e realizados pela Profª Florinda Martins – Outubro 2017.

 Arte e fenomenologia da vida[1]

«Então onde é que a obra de arte habita? Enquanto obra ela habita unicamente no espaço que ela abre / recorta pela sua presença […]. Ser-obra significa então instalar um mundo»[2]. O que pensa desta tese e como interpreta você o estatuto ontológico ou fenomenológico da obra de arte?

Em seu todo, não concordo com Heidegger, apesar do peso do seu pensamento. A grande aquisição da fenomenologia é a ideia – que vem de Husserl – de que o mundo se não limita de modo algum ao mundo existente e que no fundo há a constante possibilidade de instalação de uma dimensão ontológica nova. A realidade não se reduz então às coisas, pois há dimensões do ser insuspeitáveis sendo próprio do humano viver nesses campos novos. A arte seria um de entre eles e o artista lançaria para lá do mundo da facticidade habitual essa dimensão de ser que é um domínio absolutamente específico. A arte, em suma, definiria uma região original que não tem a sua fonte em um existente pronto – totalmente produzido– em uma espécie de mundo substancial, real, mas que nos reenviaria provavelmente a potencialidades bem mais fundamentais que não seriam aliás estranhas a esse mundo mas que seriam como um horizonte no qual esse mundo é possível. A arte revelaria uma realidade mais profunda que o mundo no qual pensamos viver, [a arte revelaria] qualquer coisa como a possibilidade desse. Isso seria, no fundo, qualquer coisa de escondido mas que ela faz ver, um aparecer puro que torna visíveis as coisas e que Heidegger interpretou na segunda parte de Ser e tempo[3] como temporalidade. É uma espécie de transcendência radical para lá dos entes, que é como que um foco de luz na tela do qual as coisas se tornam visíveis, e que, para lá das coisas, nos reenvia ao seu puro aparecer.

 

A distinção feita por Heidegger entre «coisa», «produto» e «obra de arte» parece-lhe pertinente?

 

Na medida em que esta tese é especificamente fenomenológica – isto é faz depender o ser do aparecer – há uma doação imediata das coisas que oculta a sua doação. Tomo um exemplo remontando a Kant – e creio que o pensamento de Heidegger é tributário deste exemplo. Nós percebemos corpos, esta cadeira, esta sala ou ainda o nosso próprio corpo. Aquilo que tematicamente visamos são esses corpos. Mas como já observava Kant na sua Estética transcendental, análise fabulosa pela qual se abre a Crítica da Razão Pura[4], eu jamais poderia perceber tematicamente um corpo se não tivesse a apercepção não temática do espaço. O espaço é então esta coisa que não tomo em consideração, mas que me permite tomar em consideração os corpos. Creio que Heidegger estendeu esta intuição à ideia do mundo puro que não é a soma dos entes, mas que desempenha, justamente por relação aos corpos e a todos os entes, o papel que o espaço desempenha em relação com o corpo material na percepção. É uma ideia forte, e de acordo com esta problemática, com a qual em um primeiro momento concordo, pode dizer-se que a arte nos reenvia com efeito a um aparecer originário. No fundo a arte quer dar-nos a ver para lá da coisa o aparecer que se esconde e no qual a coisa se desvela mas que, ao mesmo tempo, esconde: esta espécie de mostrar que esconde. Todavia, talvez haja em Heidegger uma outra ideia com a qual não estou de acordo.

Para Heidegger a obra de arte instalaria o mundo radical, aquilo a que ele chama a dimensão ek-stática do tempo tridimensional, o horizonte no interior do qual nós temos acesso a todas as coisas. De facto, nós esperamo-las sempre em um futuro e retemo-las em um passado. É um pouco o que você diz também no final do seu texto sobre o corpo[5]. A vinda ao presente é uma passagem na qual vemos a coisa, mas essa passagem se faz a partir de horizontes ek-státicos através dos quais ela desliza e é esse horizonte que nos permite vê-la. Eis uma primeira tese com a qual não concordo. Mas há uma outra tese que talvez esteja implicada na fala de Heidegger, retomada pela estética moderna, segundo a qual há uma dimensão estética específica, diferente da percepção real. Hoje estamos familiarizados com a ideia de que o artista cria uma obra específica, uma obra de arte que não é comparável com um objeto útil. Por exemplo, os «tamancos» de Van Gogh não servem para nada, mesmo que o sapateiro fabrique sapatos para calçar. O artista cria um mundo à parte – tamancos que não são tamancos para usarmos. É uma tese quase banal do pensamento moderno e todavia é preciso corrigi-la. De facto, essa dimensão artística específica não existia quando as grandes obras da humanidade foram criadas. A maioria das obras estéticas que admiramos, os templos gregos ou as grandes catedrais da Idade Média, por exemplo, de modo algum foram criadas desta forma. As pessoas que as concebiam não visavam a dimensão da arte, que não existia, mas construíam edifícios para a glória de Deus, edifícios cuja funcionalidade era tornar possível um culto à divindade. Nada de semelhante a isso. Eles tinham em vista o divino, o sagrado, e, de algum modo, só por acaso era belo. Somos nós quem hoje, no século XX, ao projetar retrospetivamente o nosso conceito de arte, achamos que essas obras são belas. Aliás, nada mais do que isso vemos nelas, pois perdemos a sua significação primeira e não interpretamos mais um templo como um acesso à essência sagrada das coisas, mas interpretamos como uma obra de arte.

 

Ainda assim talvez haja uma passagem histórica onde se institui socialmente o artista…

 

Sim, mas é a «passagem» – como você diz e bem – de um universo religiosa no qual as obras belas que nos parecem ser hoje como tais, não definiam a finalidade que procurava o criador, pelo menos de forma consciente: este erguia um edifício em ato de celebração e de adoração, por isso em um ato especificamente religioso. As igrejas romanas, por exemplo, que nos parecem hoje tão belas, eram, em verdade, construídas para criar um acordo/sintonia entre o espírito humano e Deus. É a via de acesso à divindade.

Em Heidegger a questão é praticamente ofuscada porque na sua obra é preciso fazer uma distinção entre Ser e Tempo que defini uma fenomenologia do mundo, um pensamento do mundo, e, por outro lado, seus textos influenciados por Hölderlin e Nietzsche. Ele percebeu então que no fundo o mundo é algo de bastante plano (superficial), um pouco banal e que o mundo dos deuses é, pelo menos, bem mais prestigioso. Simultaneamente ele fez intervir na filosofia dos deuses, do sagrado, um universo que talvez não estivesse incluído em Ser e Tempo, e sem que essa dimensão do sagrado seja fundada a nível da analítica existencial de Sein und Zeit, do Dasein, – em todo o caso é um problema que os filósofos se põem hoje. O seu pensamento torna-se assim muito difícil pois um olhar crítico torna-se doravante necessário para saber se o aparecer que ele concebe se justifica a partir de suas teses fenomenológicas sobre a temporalidade do mundo. A minha posição sobre a sua tese mais profunda, a saber, que a obra de arte nos reenvia ao aparecer originário seria esta: o aparecer originário não é aquele que pensou Heidegger, não é o mundo nem ainda a Natureza dos Gregos, ao qual se atribui o sagrado pois os Gregos viviam manifestamente em contacto dele. O aparecer originário é de uma outra ordem. Não é um aparecer ek-stático que nos projeta fora, não é pois um horizonte, mas é o que chamo a Vida, isto é uma revelação que não é a revelação de algo de diferente / de outro / que não nos abre a uma exterioridade, mas que nos abre a si mesma.

Eis um simples exemplo: que nos revela o sofrimento? Ele é mudo. Ele revela-nos o sofrimento. Então digo que há um pathos, uma dimensão pática /patética que é a vida que consiste simplesmente em provar-se /experienciar-se a si mesma. Mas experienciar-se/provar-se a si mesma é qualquer coisa de absolutamente radical, de abissal, porque isso só se cumpre no sofrimento e na alegria. Para dar referências claras, o deus não é – somente Apolo que, com efeito, é o deus da luz, o deus das imagens, das formas luminosas. O deus é primeiro Dionísio. Ora Dionísio não tem mundo. É um deus que é deus do desejo ou da vida grudada a si em sua alegria e em seu sofrimento. E é um deus encarregue de si em um pathos tão pesado do qual, com efeito, quer libertar-se / desfazer-se. No fundo, Dionísio é aquele que gera Apolo para se distanciar de si. Encontraremos este tema em Freud: o que é a libido? O que é o eu / me / mim? É uma realidade que se tem a seu cargo de modo tão pesado; a vida é um fardo tão esmagador que ela procura distanciar-se dele.

Neste momento, propõe-se uma outra explicação da arte enquanto pôr à distância daquilo que se suporta primeiro a si mesmo, mas como fardo insuportável. E o outro ponto de partida seria então Schopenhauer, Nietzsche, etc. Encontraríamos ainda esta ideia de que a arte criada, neste colocar à distância, uma espécie de luminosidade, figuras nas quais e graças às quais Dionísio escapa ao seu sofrimento.

Se aprofundarmos a fenomenologia da vida, a questão fundamental é a do Si transcendental, daquilo que nos permite dizer «Eu», «Me/Mim». Ora nas filosofias de Heidegger ou de Merleau-Ponty não há qualquer fundamento para este Si. Nenhuma destas filosofias tem como explicar por que digo «Eu» ou «Me /Mim». Em uma filosofia da vida que é uma auto-afeção – termo fundamental para mim – quer dizer que é uma auto-afeção não pelo mundo mas por si mesmo, toda a percepção, toda a imaginação, todo o pensamento conceptual é uma hétero-afeção. É uma afeção por uma alteridade, por esse meio de alteridade onde o que quer que seja de outrem /outro pode mostrar-se a mim dar-se originariamente a mim como outro. Mas se toda a coisa se dá a mim como originariamente outro não haveria Me/Mim ao qual ele se dá. Para que haja um Me/Mim é preciso falar como Kierkegaard e dizer que o Me/Mim é qualquer coisa que é afetado por (para) si sem distância, pelo que sem poder desfazer-se/libertar-se, sem poder separar-se de si, sem poder escapar àquilo que o seu ser tem de fardo / peso. E diria que esta dimensão nova da arte se explica unicamente pela Vida. É apenas em relação a esta dimensão pática, da qual Dionísio é uma imagem, mas na qual se desenvolve também o Cristianismo[6], é em relação a esta vida que é uma vida transcendental, esta vida definida também fenomenologicamente, que a obra de arte é possível.

É preciso neste momento introduzir uma rutura total e dar uma outra teoria da obra de arte. Esta foi explicitamente formulada pela primeira vez por Kandinsky – que admiro infinitamente – em seus escritos teóricos[7]. Estes foram concebidos para produzir uma teoria da pintura abstrata. Mas se refletirmos sobre a exposição que Kandinsky faz dessa pintura abstrata, apercebemo-nos que é uma teoria que vale para toda a pintura em geral.

 

Em Fenomenologia material[8] você analisa a «substância fenomenológica invisível» que é «a imediação pática na qual a vida «faz prova de si». Se, como você afirma, a vida é «o princípio do todas as coisas» como se pode encarar uma fenomenologia do invisível ou mais exatamente da relação entre o visível e o invisível do ponto de vista da arte? Questão conexa, a obra de arte é visível ou invisível, imanente ou transcendente, objetiva ou subjetiva, interna ou externa? Referimo-nos às reflexões fenomenológicas de Roman Ingarden[9]

 

As suas questões são as minhas questões…Marx diz algures que a Humanidade só se põe as questões que pode resolver. Eu diria, de modo mais modesto, que enquanto filósofo que tem vindo a trabalhar fora dos caminhos percorridos pelo pensamento moderno, estive em uma situação de precaridade em relação ao que queria dizer, isto é, que me foi muito difícil encontrar os meios conceptuais para expressar uma outra fenomenologia. Uma fenomenologia decerto, mas totalmente outra visto que a minha concepção de aparecer não é apenas o aparecer do mundo, mas a doação pática, a revelação pática..

Apoiei-me nos escritos de Kandinsky porque a sua análise põe em jogo as categorias que eu tinha destacado na minha própria análise fenomenológica. Cheguei a esta ideia que há uma «duplicidade do aparecer»: um modo de se dar na hétero-afeção, como tudo o que vemos, e um modo pático/patético, o que jamais vemos. Porquê? Porque visto que não há distância não há desdobramento ek-stático no sentido compreendido por Heidegger, não há ver possível. Para ver é preciso que haja uma espécie de distância. Aí, não há distância, a revelação faz-se unicamente na carne da afetividade, faz-se sem distância. Nesse sentido, essa dimensão da vida é invisível em sentido radical. Ela apenas se pode provar pateticamente. Mas ela prova-se pateticamente de modo incontestável porque é absolutamente impossível contestar um sofrimento, o sofrimento daquele que sofre. Se nos detivermos na prova/experiência pura e simples – no fundo é o cogito de Descartes[10] – não há aí qualquer dúvida. O temor, por exemplo, se me detiver nele sem interpretação daquilo que experiencio verdadeiramente, é indubitável. No extraordinário exemplo do sonho de Descartes, ainda que tudo o que vejo seja falso – é a hipótese da falsidade do visível, quer seja sensível quer seja inteligível – se experiencio um temor o meu temor é tal como o experiencio e é absolutamente indubitável. Eis o dito racionalismo de Descartes….

 

As paixões da alma?

 

As paixões, exatamente. Então se aceitarmos isso como se situa a obra de arte? Creio que a demonstração de Kandinsky é fulgurante porque ela a faz a propósito da pintura. Ora, com toda a evidência, a pintura é uma arte visual, ela é feita de elementos visíveis, desses elementos fundamentais que são as formas e as cores. Razão pela qual a pintura sempre foi considerada como uma arte do visível, cuja carne é o visível.

Comecemos pelas cores. Kandinsky mostra como é que um quadro se organiza em torno de uma cor. Em uma vegetação / um bosque nos arredores de Munique, por exemplo, ele vê uma cor e pinta o que está em redor. Ele pinta um quadro que se compõe a partir do vermelho, de uma mancha vermelha, etc. Mas quando pensa a respeito diz que essa cor parece um fragmento de exterioridade. Há uma espécie de mancha vermelha, ainda que ele não pense esse vermelho como o vermelho de um papel mata-borrão ou o vermelho dos lábios de uma mulher ou de seu lenço: há todavia algo que se desdobra em uma espécie de primeiro mundo, ainda que não seja o mundo unitário. Em verdade, acrescenta ele, a realidade dessa cor é uma impressão, uma impressão radicalmente subjetiva. Não há nele qualquer referência filosófica, mas enquanto fenomenólogo posso dizer que essa é a tese de Descartes e também de Husserl. Porque em Husserl, antes que a cor seja um momento ou uma qualidade do objeto, uma «cor noemática», ela é uma impressão pura, ela é uma cogitatio, ela é da ordem do temor no sonho de Descartes. Por isso a cor é dupla, ela é primeiro um vermelho que vejo na paleta, mas ao mesmo tempo sou vítima de uma ilusão ao crer que o vermelho se limita a esta mancha que vejo na paleta. Na verdade, a realidade do vermelho é a impressão que este vermelho exposto na paleta cria em mim. E essa impressão é a essência originária da cor.

Podemos demonstrar isso metafisicamente. Tomemos o exemplo do calor. Se coloco a minha mão aí, posso dizer: «Olha, este material plástico é fresco!» Mas isso é um absurdo: esse plástico é plástico, não é fresco, ele nada sente. A frescura é puramente subjetiva, projeto-a na minha mão e projeto-a sobre a matéria. Do mesmo modo, quando digo que «o muro está morno», é um absurdo, é fetichismo. Descartes encolheu os ombros perante essa ilusão: o muro não é de modo algum morno, sou eu quem está morno. O mesmo se passa com a cor vermelha. Não há vermelho no mundo. O vermelho é uma sensação e esta sensação é absolutamente subjetiva, originariamente invisível. As cores originárias são invisíveis, mas elas estão expostas sobre as coisas por um processo de projeção.

A pintura constrói uma tela, é uma «composição». Este é o termo que Kandinsky dá a todas as suas pinturas, em dado momento, porém elas serão sempre composições. A composição do quadro é pois a decisão do artista colocar aqui vermelho, ali amarelo. Ora porque põe aqui vermelho e ali amarelo? Há duas explicações. A primeira consiste em dizer que o objeto que se pinta, por exemplo esta parede de tijolos de uma casa holandesa, é vermelho. Por cima temos o céu cinzento-azulado então pintamos cinzento-azulado. A pintura tem um modelo que está no mundo que quereis restituir, ainda que não queirais fotografar. Mas esta explicação é sem valor, pois a maior parte dos grandes quadros de aspeto figurativo não obedece a esta lei de construção. Se, por exemplo, contemplarmos uma adoração dos magos pintado em Quattrocento, podemos admirar a cena em que os magos chegam cobertos de maravilhosos trajes, trazendo presentes ao mais humilde dos seres. Este tema dá lugar a maravilhosas composições. Ele foi conservado pois permitia a exploração estética da sensação. Ora nenhuma pintura viu a adoração dos magos. Os pintores não tinham qualquer razão em mostrar que Gaspar ou Baltazar vestissem de amarelo em vez de vermelho. Também não tinham qualquer razão para os representar desta ou daquela maneira. As escolhas que parecem corresponder a ricas vestes da época, a escolha das cores apenas se pode situar algures, em outro lugar que não o da representação objetiva. Que lugar é esse? É o poder emocional da cor. É um objeto de reflexão clássica desde Goethe, mas que se torna fundamental em Kandinsky que toma como fundamental estudar o poder emocional de cada cor. Assim ele apercebe-se de que o amarelo é uma cor agressiva que se dirige ao espectador, enquanto o azul é uma cor apaziguadora que se distancia dele. Então pintarei aqui de azul e ali amarelo consoante quero produzir esta impressão da coisa que se dirige para nós, que nos ataca, ou pelo contrário que nos apazigua. Toda a cor será objeto de uma análise emocional e dinâmica e essa análise dará a verdadeira razão pela qual a cor foi utilizada. E essa razão não reside na exterioridade, no visível, mas na capacidade emocional, impressional, da cor. Toda a lei de construção do quadro é arrancada ao mundo para se situar em uma subjetividade radical. Podemos pintar não mais o mundo, mas a alma das gentes, as suas emoções. Mas podemos também mostrar que se a pintura escolheu representar esta ou aquela coisa, é porque essa coisa tem, em virtude de suas cores, esse efeito impressional sobre ele. Até a pintura figurativa é uma confirmação disso.

Se considerarmos as formas, a demonstração é ainda mais luminosa. Uma forma não é uma espécie de entidade exterior, é a expressão de uma força. O ponto, a linha reta, a linha quebrada /descontínua, etc, são a expressão de forças específicas que se desdobram de maneira diferente, contínua ou intermitente, em uma direção ou modificando a direção. E a teoria das formas que reenvia às forças, reenvia também à subjetividade, porque as forças habitam o nosso corpo, o nosso corpo vivido, o nosso corpo subjetivo que é o nosso corpo real. Por conseguinte o mundo das formas é, de algum modo, um universo cifrado cuja verdadeira significação reenvia ao jogo das forças em nós, por conseguinte à vida, porque o corpo vivo é um corpo que é feito de forças: tal é a origem da pintura. Aqui ainda, é um elemento invisível, a força invisível com a qual se identifica o corpo vivo, que é o princípio da composição da pintura.

A pintura toma como tema explícito expressar a vida e a este respeito ela une-se à música. Porque a música jamais quis, se excetuarmos a música representativa à qual todos reconhecem o caracter superficial, imitar o barulho do vento ou da água sobre uma pedra. Ela teve sempre como desígnio expressar a vida, dando assim antecipadamente razão à fenomenologia da vida. Ela não expressa nada, ela não expressa o horizonte do mundo nem nenhum de seus objetos. O primeiro pensador que acedeu à essência da música for Schopenhauer. Os outros distanciaram-se ao dizerem que se trata de matemática, ao passo que Schopenhauer – um dos grandes pensadores de todos os tempos ainda que mau filosófo, pode ser-se um mau filósofo e um muito profundo pensador – afirmou explicitamente que a música expressava a afetividade[11]. Podemos conceber que toda a arte, mesmo a mais exterior, expressa a afetividade e reenvia ao corpo vivo.

O corpo é a ilustração comovente da ideia que eu persegui em toda a minha pesquisa filosófica sobre a dualidade do aparecer, aquilo a que chama «dualidade do aparecer»: visível e invisível. O corpo apresenta-se primeiro no mundo e é interpretado imediatamente como um objeto do mundo, algo que é visível, que posso ver, tocar, sentir. Mas esse é apenas o corpo aparente, o corpo real é o corpo vivo, o corpo no qual habito, que nunca vejo e que é um feixe /conjunto de poderes – eu posso, eu pego/agarro com a mão – e esse poder eu desenvolvo-o do interior, fora do mundo. É uma realidade metafisicamente fascinante visto que tenho dois corpos: visível e invisível. O corpo interior que eu sou e que é o meu verdadeiro corpo, é o corpo vivo, é com este corpo que, em verdade, ando, tomo, abraço, sou com os outros.

É este corpo invisível que é além do mais a fonte do desejo: em presença do corpo do outro, eu percebo um corpo visível mas pressinto uma subjetividade e é ela que quero alcançar. Na teoria do erotismo pode mostrar-se que o desejo – e é por isso que ele recomeça infinitamente – visa alcançar algo que não pode tocar no mundo mas que se toca a si mesmo fora do mundo e que é justamente a vida, a vida invisível daquele ou daquela que eu desejo. De facto, todos os gestos do desejo são atos simbólicos nos quais procuro aproximar-se do lugar no qual coincido com o prazer do outro. Mas é um problema metafísico saber se realmente acedo a esse lugar onde o outro se experiencia/ vive/ prova a si mesmo nessa imediação que é a vida.

 

Em relação ao que você acaba de dizer sobre o corpo, você desenvolve uma teoria do sujeito…

 

Sim, e isso responde à implicação do corpo na obra de arte. Kandinsky pinta deliberadamente a vida. Em relação a esse projeto fabuloso no qual a pintura não terá mais que pintar o mundo mas expressar a vida, do mesmo modo que a música, há a ideia, com efeito, de que a pintura é uma mediação entre os seres. Precisamente porque os «elementos» da pintura, segundo sua expressão, não são só objetivos mas também subjetivos. Por conseguinte aquele que olha uma forma experiencia o mesmo pathos que aquele que o concebe, na medida em que a forma só pode ser lida pela reativação – em uma espécie de simbiose patética, pelo menos imaginária, de forças que são em você, que são identicamente as forças do corpo vivo do criador ou do espectador. Se determinado tipo de linha expressa determinado pathos, então aquele que vê a linha retraça-a, recria-a com as forças subjetivas encontra-se no mesmo estado patético que aquele que a desenhou. O traço de Paul Klee obriga implicitamente aquele que olha um dos seus desenhos a reviver aquilo que Paul Klee vivenciou. A realidade do traço é uma força totalmente determinada, por exemplo, uma força que inquieta, perturbadora, que muda sem cessar. Não só simplesmente metáforas. A intersubjetividade cumpre-se na medida em que o quadro é um conjunto, não de formas mas de forças, não de cores mas de cores exteriores transcendentes, mas de impressões e de emoções. Neste momento há a contemporaneidade: o espectador torna-se contemporâneo das forças e das impressões que recria nele o quadro como imaginário, na sua aparência exterior. É verdadeiramente uma contemporaneidade no sentido de Kierkegaard. Para Kierkegaard, o crente é aquele que se torna contemporâneo de Cristo[12], quando muitos contemporâneos de Cristo o não foram. Ser contemporâneo quer dizer repetir em uma repetição interior, na reactualização daquilo que outrora fora atualizado.

Neste âmbito da pintura, a contemporaneidade é essa textura de forças e de emoções interiores das quais o quadro é expressão. Expressão que não está separada daquilo que expressa, a ser verdade que a cada instante a realidade da cor reside na impressão interior e que a realidade da forma reside na força interior e que sem essa força interior a forma torna-se qualquer coisa morta. Os quadros são mortos sempre que não fazem advir essa reactualização em uma subjetividade que pode ser também ela tanto do espectador como do criador.

 

Você fala da intersubjetividade como «comunidade patética». Podemos então considerar que a arte seria a mediação ética do ser-conjunto social? Você sublinha igualmente a necessidade «de uma fenomenologia da vida transcendental»[13]. A questão que se põe neste momento, a admitirmos esta noção de transcendentalidade da vida, vai no mesmo sentido: pode dizer-se, e porquê, que a arte é uma ética da comunidade ou da intersubjetividade?

 

Sim, certamente. Então como? Vou dar-lhe uma resposta puramente pessoal que por isso é para tomar ou largar. Nós somos vivos, mas é uma condição metafísica extraordinária difícil de compreender, e devo dizer que o meu trabalho sobre o cristianismo me permitiu circunscrevê-la melhor. O caracter decisivo da nossa vida é que somos funcionalmente passivos: não somos nós quem nos aportamos a esta vida. Então como esta condição da nossa vida é invisível como nossa própria vida nós não prestamos atenção a isso. De facto, a nossa vida é uma espécie de história não separada de ela mesma, história não ek-stática, é uma história em que há apenas um presente vivo, sem futuro nem passado. Estamos constantemente connosco. O eu /me/mim não pode fatiar-se em fases que passam e em fases que em porvir, esta partição é irreal e apenas aparece na representação. O eu /me/mim vivo é com efeito uma espécie de auto-movimento, de auto-transformação, como uma bola que rola e que jamais se separa de si. Ora esta condição de vivo, nós já vimos que na vida, em uma vida que é ao mesmo tempo nossa e não nossa. Somos vivos por uma vida que vem em nós como nossa vida mas na medida em que nós não somos tidos em conta para isso. É então uma situação metafísica totalmente radical e, a meu ver, apenas o cristianismo explorou esta situação com a tese extraordinária segundo a qual o humano é filho de Deus. Deus é Vida. Isso significa que o humano é um vivo gerado na vida, na singular e única vida que é a Vida absoluta, Deus. O humano é então um vivo na vida, de tal forma que a sua vida é ao mesmo tempo ele mesmo e mais do que ele. Poderíamos explicar isto de outro modo – é aliás um tema nietzscheano[14] – e afirmar que esta vida tende sem cessar a acrescer, isto é, que a vida não é algo que continua simplesmente, mas existe existe metafisicamente em uma condição que é o acréscimo de si.

Tomemos um exemplo preciso. Cada ato de ver tende a ver mais, cada ato de compreensão tende a compreender mais, cada ato de amor tende a amar mais. De forma espantosa, isso é também o que pensa Marx. A vida é um poder de acréscimo ao mesmo tempo que é patética, pode dizer-se que ela se prova a si mesma continuamente e não sai desta condição senão morria. Há ou a vida ou a morte, e logo que esta realidade de que falamos não se prova mais a si mesma, apenas há a morte. A vida que se prova a si mesma tende a provar-se mais sem cessar.

Ora o que se passa na obra de arte? Nela, há como que um despertar da minha subjetividade, porque as formas, as cores, os grafismos despertam em mim essas forças das quais eles são expressão. Porque essas cores – bem mais do que as cores descoradas e indiferentes do mundo que não provocam mais em mim do que tonalidades enfraquecidas – vão forçosamente atualizar essa tonalidades e dar-lhes uma intensidade dinâmica e emocional bem maior. Há assim pela mediação da obra de arte, como que uma intensificação da vida, tanto do espectador quanto no criador. É uma espécie de vinda à vida mais essencial que circula em cada um de nós. O criador é então alguém que cumpre uma obra ética, a ser verdade que a ética consiste em viver o nosso laço /vínculo à vida de modo cada vez mais intenso. Estou a manter ideias que provêm da minha orientação atual na qual confluem a estática de Kandinsky, o livro que acabo de escrever sobre o cristianismo e talvez ainda o aprofundamento das teses fenomenológicas que eu sempre defendi.

Em seu começo a arte era religiosa em sua essência, antes de haver uma dimensão específica da arte que supõe uma degradação da humanidade. O que é a religião? Religio, que quer dizer um laço /vínculo – não tendo qualquer importância se a etimologia ´s verdadeira ou falsa, é um esquema de trabalho. Este laço para mim é o vínculo do vivo à vida. É o laço misteriosa e interior que faz com que não haja vivo sem vida – uma vida que é a sua e mais que a sua. A ética tem por finalidade mostrar-nos esse laço, isto é fazer com que este laço esquecido seja revivido. Ela quer devolver-nos à nossa condição metafísica. Isto é fazer desse modo – é cristã, mas poderia também ser dita nietzscheana – que o vivo, em vez de recair na sua condição circunscrita e limitada, prova a vida nele, em uma forma de experiência – não diria mística, tanto que esta palavra é imprecisa – mas enfim, todavia, em uma intensificação radical da vida. Isso é o que a ética visa suscitar. Visto que vivemos esse laço, a vida do vivo consiste em viver, sem o saber, o seu vínculo com a vida. Esse laço pode ser esquecido. À medida que o humano apenas se prende às coisas materiais e às suas contingências, ele desvia-se do seu laço verdadeiro. Mas pode revivê-lo, não por uma reflexão intelectual, mas provavelmente nas experiências puras que são patéticas. A ética visa provocar experiências desse género, pôr-nos em condições em que, em vez de viver de uma vida perdida no cuidado do mundo, revivemos interiormente esse laço radical. Existe igualmente uma esfera que permite isso em seu princípio, é a arte. A arte é por natureza ética. Na medida em que a arte desperta em nós as potências afetivas e dinâmicas de uma vida que é ao mesmo tempo ela mesma e mais do que ela, a arte é a ética por excelência. É também uma forma de vida religiosa, Razão pela qual a experiência estética é fundamentalmente sagrada e todas as obras de arte são obras sagradas com um imenso poder sobre nós. Mesmo em tempos incrédulos – como hoje – as pessoas indiferentes à religião são tocadas pelas obras sagradas. Esse laço da arte com o sagrado não é aqui afirmado de modo gratuito como em Heidegger que o fabricou, ele, ao trazer os deuses que…

 

…«ne mènent nulle part »?

 

Os deuses que eram os deuses gregos, os deuses que encontrara em Hölderlin…E sim, tudo isso cheio de deuses! Mas qual é o fundamento dos deuses em Heidegger? Deixemos de lado esta questão e voltemos ao laço essencial que existe entre intersubjetividade, ética, estética e religião. Para mim, a estética é uma forma de religião em sentido de laço fundamental constitutivo de todo o vivo transcendental, com a Vida absoluta – aliás não há outra vida senão a Vida transcendental. Não há outra vida pois os próprios biólogos dizem que já não estudam a vida, eles estudam partículas materiais. Para eles a vida não passa de uma velha entidade metafísica. Então, ou não há de todo vida ou é preciso dizer que é a vida transcendental. A Vida transcendental é a cogitatio de Descartes, é a sensação, afeção, a paixão.

 

A vida é a transcendência?

 

Não é a transcendência. A vida é também uma vida no mundo, mas quando a fenomenologia estuda o ser no mundo, ela crê falar da vida. De facto ela pressupõe a vida sem a explicar. Para explicar a vida é preciso ter em consideração essa dimensão da autoafeção na qual aquilo que se prova a si mesmo, como em toda a dor. Ora esta espécie de interioridade foi rejeitada pelos fenomenólogos no seguimento do seu fundador. Para Husserl, é muito mais complexa, na realidade porque ele voltou à impressão, mas para Heidegger, o humano está diretamente no mundo. Para Merleau-Ponty também[15]. Todavia eles estão constantemente obrigados a pressupor a vida.

 

A questão é então a da relação entre essa transcendência e a transcendência divina. Você diz finalmente que a vida é autoafeção de si, pelo que a vida se reconhece a si mesma. Ora em Levinas, por exemplo, é a alteridade que é primeira. Para você parece ser a ipseidade da vida…

 

´´E uma questão que me colocam muitas vezes. Iludi-a sempre. É preciso distinguir, a meu ver, dois sentidos radicalmente diferentes da transcendência. Primeiro a transcendência dos fenomenólogos que designa simplesmente o facto de a minha consciência alcançar diretamente uma coisa. Transcendência no sentido de Husserl quer dizer que a consciência intencional se supera em direção a um objeto, incluindo nele o mais humilde, que ela alcança de imediato sem passar por uma representação. Ela alcança «a coisa mesma». E este objeto é transcendente. A transcendência tem aqui o sentido mais trivial. É o objeto transcendente em relação ao meu olhar. Isso arrasta consigo um grande equívoco porque o sentido tradicional da palavra transcendência é um sentido religioso que se refere a Deus. E isso quer dizer também qualquer coisa fora do mundo, algo que é a-cósmico, como a vida de que falo, e que, porque ela não se mostra no mundo, é invisível: não posso vê-la nem tocá-la. Há nisso um equívoco enorme. Trata-se de dois sentidos totalmente diferentes da transcendência! Ora o golpe de génio e a ambiguidade de Heidegger foi ter colado um ao outro. Essa forma de alcançar a coisa no mundo e estar no mundo que era o «transcendente» de Husserl torna-se na transcendência do Ser . O «Ser transcendente» de Heidegger é este horizonte de exterioridade, aliás já inalcançável, onde alcanço todas as coisas. «O Ser é o transcendente puro e simples», diz ele. Há aqui uma escamoteação e uma fonte de confusão porque as pessoas não podem mais conhecer os seus deuses, sobretudo quando se definiu tradicionalmente Deus como Ser absoluto, como em todas as concepções escolásticas ou teológicas. Ora, como o Ser heideggeriano não é o mesmo que o Ser tradicionalmente identificado com Deus, o Ser parece revestir vários sentidos. Deus para mim é a vida, aliás para o cristianismo também, para Cristo também. Dizer que o humano é filho de Deus é defini-lo pela vida. Tal não é o caso de uma pedra que não é filha de outra pedra. O problema do ente, do Ser do ente, da sua diferença, mostra-se secundário e estranho à problemática fundamental e originária da relação do vivo com a Vida.

Volto a Levinas. Para Levinas que me consagrou um curso na Sorbonne[16] há uma certa desqualificação da intencionalidade e do sujeito porque a intencionalidade é «Eu penso qualquer coisa» como uma espécie de domínio do objeto pelo sujeito. Creio que Levinas inverteu esta relação no seguimento da leitura de L’essence de la manifestation[17]. Para ele o humano nem é mestre nem dono do mundo, não é o Eu que começa porque de facto eu sou atingido pelo Outro. Se a relação com o Outro não é uma relação do sujeito com o objeto, se o sujeito é de algum modo tocado e mesmo transposto em seu ser por algo outro que o põe onde está, tudo terá que ser repensado. Mas qual é o estatuto fenomenológico da alteridade em Levinas? O seu Outro é ambíguo: é o Outro ou é Deus, ou o Outro é o modo como Deus me toca? Esta filosofia que quis inverter a relação é grandiosa, ela fundou uma ética, ela pôs o sujeito sob o olhar do Outro, aquilo que Sartre tinha aliás já de algum modo feito[18]. Mas mais uma vez de que Outro se fala? Pergunto-me se a questão ética da alteridade não reenvia secretamente a uma questão fenomenológica mais essencial ainda: a de uma outra fenomenalidade, um outro modo de manifestação e de revelação que é justamente a Vida. Se nos colocamos em uma fenomenologia da vida, também há uma alteridade: é aquela que significa a vida para todo o vivo. Mas essa relação não pode mais ser compreendida como uma relação ek-stática, mas como uma relação patética.

 

É a questão do rosto?

 

Sim, mas então qual é o estatuto fenomenológico do rosto? Para mim a vida é sem rosto. Creio que há uma alteridade fundamental na vida. A egologia está ultrapassada, na medida em que há um nascimento transcendental do ego. Não parto mais do ego cogito, como Descartes, mas sustenho que o ego foi aportado em si mesmo. É a teoria da ipseidade: ipseidade não é de todo uma egologia, não se pode confundir ipseidade e ego, porque o ego só é um ego no fundo de uma ipseidade que o dá a si mesmo e na qual ele não é tido em conta. Dito de outro modo, só há ego e me / mim pela ipseidade fundamental que é o Si e que é o Si da vida.

A vida – Vida absoluta, vida que se autogera, que é a vida de que fala Mestre Eckhart, a vida que se autoafeta em um sentido radical -, provando-se /experienciando-se a si mesma, gera em si uma ipseidade. Nesta ipseidade e por ela são possíveis múltiplos eu e múltiplos ego. Mostrei no meu livro sobre o cristinaismo[19] como é que o ego é engendrado a partir de uma ipseidade fundamental, ela mesma engendrada a partir de uma vida absoluta. Há um processo de nascimento transcendental do ego e o único pensador que o concebeu sem todavia o teorizar foi Kierkegaard. Ele afirmou que somos um Si transcendental, um Si com S grande, que o humano não existe independentemente de um Si transcendental visto que não há definição biológica do humano. Se se diz que o humano é um animal «racional» embatemos no facto de uma razão impessoal e ainda sujeita a caução pois se pode conceber outras razões que não a nossa, como fez Descartes pois, para ele, as verdades racionais são criadas. Há outros mundos possíveis. Há outras estruturas de apreensão das coisas. Mas não é esse o caso para o Si porque o Si é algo que se reporta a si absolutamente e segundo uma relação infrangível que não pode ser outra que aquela que é. Reportar-se a si não é um reportar ek-stático, mas um reportar pático.

Há uma transcendência em sentido tradicional, mas essa transcendência não é nada ek-stática, ela é relação, impensada até ao presente, do vivo na vida, que pode ler-se como a prova que o vivo faz da vida, que é, no fundo, a prova que fazem os místicos e que as gentes vivem sem o saberem. Eles vivem esta prova pois eles nada mais são do que aquilo mesmo que provam, mas vivem sem o saber porque vivem no entorpecimento, em uma espécie de fascínio em relação ao mundo de alienação radical, em um estado que o mundo moderno acresce vertiginosamente com os media, essas imagens que são anti-arte. Porque a imagem da arte, é a ressurreição da vida em nós.

Podemos procurar compreender essa relação do vivo com a vida – como é que a vida gera em si o vivo – à maneira de Mestre Eckhart. Então aí, é preciso, sem mais, colocar-se em Deus que não somos para compreendermos como é que na vida é necessariamente gerado – para que ela seja vida – um primeiro vivo. A vida só pode ser um Si. É o que no fundo diz o cristianismo. É o único pensamento profundo sobre o humano.

 

Você evocou a intencionalidade do olhar ou do visível, igualmente a intencionalidade da audição ou musical. Poderia invocar outras intencionalidades, como a intencionalidade da pesquisa, a que visa campos e objetos ainda não conhecidos ou desconhecidos?

 

Husserl descobriu campos de objetos novos, estruturas de seres diferentes ao estudar intencionalidades específicas. Neste campo de análise intencional, ele descobriu campos ontológicos que ninguém ainda tinha explorado. Em Lógica formal e lógica transcendental, que é um livro fabuloso[20], ele mostra que a intencionalidade é como que um projetor que mostra as coisas que jamais se viram. Procurou até mostrar o mesmo em relação à vida subjetiva ao analisar a temporalidade interior que é totalmente diferente do tempo objetivo[21]. Mostrou – aquilo que institui a relação essencial do investigador com o seu objeto de pesquisa – que a intencionalidade é um ato do espírito que constitui o campo do sentido, sem que exista na natureza. A geometria, por exemplo, constitui figuras geométricas ideias, idealidades geométricas que não existem na natureza. Na natureza, há redondos mas não há o círculo. O círculo é uma figura ideal. O humano inventou dimensões ontológicas que não existem: a arte não existe, a geometria também não, o humano criou-as como seres ideais. Na relação do investigador com o seu objeto há igualmente este aspecto de idealidade criativa e um investigador põe em jogo certos pressupostos talvez completamente esmagado por aquilo que descobre….

Toda a intencionalidade é ao mesmo tempo auto-afetiva ao provar-se a si mesma enquanto dada a si mesma e hétero-afetiva na medida em que ela se abre a algo que não ela.

 

Ao imaginário?

 

Para Husserl a intencionalidade imaginante parte de um suporte material e, ao apoiar-se nele, ela constitui um universo de significações vividas: mas não vemos os constituintes materiais desse quadro, vemos a imensidão do mar em Veneza, por exemplo. Do mesmo modo, a partir dos signos materiais vemos o espaço. Nos primitos flamengos há grandes personagens, a Virgem e o Menino, e depois uma janela que abre a uma infinita paisagem. Quer dizer que a partir de elementos reais que são a materialidade da pintura é a intencionalidade imaginante, guiada pelos signos que ela percebe, institui a obra de arte. É por isso que a obra de arte é imanginária. O espaço não está no quadro pois o quadro é plano e no quadro clássico temos um imenso espaço. Na pintura normal a três dimensões, o espaço é fictício: a partir de uma plana, cremos ver profundidade. Mas a profundidade é puramente imaginária, não há profundidade no quadro real. Do mesmo modo, o volume de uma personagem é um logro. E esse logro é criado pela imaginação estética visto que não há percepção mas imaginação do espaço. Através de um quadro cava-se um longínquo até ao infinito. Isso é imaginário, essa profundidade da representação pictural quando o seu suporte material é plano.

Para Husserl o imaginário supõe a intencionalidade imaginante que se chama imaginação, mas essa imaginação é uma consciência imaginante que deve conhecer-se enquanto imaginação. Se a imaginação se não vive como imaginação não há imaginário. Então a imaginação, antes de projetar a imagem que imagina, auto-afeta-se. O ato da imaginação é um ato vivo, ele reporta-se a si mesmo enquanto ato que se prova imediatamente, mas nunca como se reporta à imagem. Ele reporta-se exteriormente, ek-staticamente, à imagem e reporta-se paticamente a si mesmo: é este reportar-se patético primordial que os fenomenólogos ocultam as mais das vezes.

 

Se admitirmos a tese fenomenológica clássica na qual a corporeidade é a encarnação, podemos dizer então que toda a obra de arte, toda a perspectiva estética, se refere a uma ou várias intencionalidades corporais? Dito de outro modo, a dimensão estética só poderia referir-se às artes maiores do olhar e da audição ou podemos generalizar a arte a toda a intencionalidade corporal o que suporia uma desconstrução bastante radical da estética tradicional?

 

Absolutamente. Uma fenomenologia do corpo não estuda apenas os cinco sentidos tradicionais que são intencionalidades: a visão, o tato, a audição, etc. É preciso voltar ao problema do corpo para responder à questão[22]. Houve inúmeras teorias do corpo, aliás no seu artigo você faz uma bela exposição dessas teorias, ainda que quase todas elas sejam teorias da imagem do corpo. É o corpo tal como o representamos, com o sue papel simbólico, etc. Mas o problema original não está aí. Um pensador viu isso, foi Maine de Biran. Há nele uma aguda atenção dada ao movimento, é o coração da sua teoria do corpo que nenhuma filosofia do corpo elucidou antes. O corpo é movimento, mas o movimento vai mover alguma coisa. Ora é preciso primeiro que o poder que segura ou que move esteja em posse de si mesmo. E está na posse de si impressionalmente, isto é que eu sou um «Eu posso» e que este «Eu posso» é a si dado afetivamente. Que o meu corpo seja um «Eu posso» dessa forma é a definição de ser humano para Maine de Biran. Para se exercer é preciso então que este poder esteja na posse de si, do mesmo modo que a intencionalidade só pode formar a imagem se estiver na posse de si enquanto intencionalidade. Para Maine de Biran o movimento auto-afeta-se. Ele é uno consigo, nessa prova imediata que faz de si. É só porque o poder de pegar está na posse de si que posso pegar. Dito de outro modo, o estatuto do poder e do movimento é o mesmo: é uma cogitatio no sentido de Descartes. O poder é uma relação consigo mesmo, prova-se a si mesmo imediatamente, exatamente da mesma forma que o temor está em relação consigo e se prova imediatamente a si mesmo. O «Eu posso» supõe não apenas uma corporeidade intencional, mas também uma corporeidade pática. O corpo, antes de ser o que projeta nas coisas – «meu corpo alça-se em direção ao mundo» diz Merleau-Ponty – é paticamente um com ele.

Reconhecemos aqui o problema da alma e do corpo. É verdade que este problema constitui uma aporia com que se depararam todos os filósofos: Espinosa, Malebranche, Descartes, etc. O problema consiste, com efeito, em saber como pode um agir sobre o outro. Ora é absolutamente impossível compreender como é que uma volição da alma pode determinar um movimento corporal objetivo. Se a minha vontade é uma vontade subjetiva, espiritual, como pode agir sobre o corpo objetivo? É contínua magia. A solução de Maine de Biran é esta: na verdade o poder originário – «Eu ajo», «Eu posso» – é invisível. A relação consigo do poder é como a relação do meu temor consigo: eu sou no meu poder, o meu poder é latente, eu experiencio-o, eu sou o poder e desdobro-o no plano invisível. Mas esse poder que desenvolvo no invisível, em virtude da dualidade do aparecer, pelo facto de haver um mundo, eu percebo-o do exterior no mundo. Isso quer dizer que estou na posse do meu poder como de um temor: provo-o, exerço-o mas, como tudo é duplo, vejo-me também do exterior. Há dois corpos assim como há dois eu /me/mim: um eu/mim transcendental que se apercebe no mundo sob a forma de um me/mim empírico. Há um eu sujeito e um me/mim objeto. Quer dizer que há um eu que não está no mundo e porque há um eu que não está no mundo ele pode ver o mundo.

O movimento é um problema difícil porque o poder é puramente subjetivo, é vivo, eu estou em seu poder e por isso sou capaz de o desenvolver e cumprir mas eu posso também percebê-lo como um objeto no mundo. A solução de Maine de Biran consiste em mostrar que o movimento real se desenvolve no invisível e nós, nós vemo-lo do exterior. Tenho duas experiências do meu movimento: aí onde o executo e aí onde o vejo. Experiencio-o pelo esforço, com o sentimento de esforço, por isso o corpo é dado pateticamente, e do exterior vejo-o. O que supõe um duplo aparecer. Há um só corpo, posso vê-lo do exterior mas vivo-o do interior.

 

Mas então o que se passa com essa intencionalidade corporal?

 

O que é originário não é a intencionalidade, nem mesmo a intencionalidade corporal. Você quer interrogar-me sobre a intencionalidade corporal, mas eu resisto para dizer: antes da intencionalidade corporal há a corporeidade. Ou seja, aquilo que dá a intencionalidade corporal a si mesma: a Vida. Para Merleau-Ponty, o corpo é imediatamente intencional. Porquê? Porque a subjetividade husserliana era intencional. Merleau-Ponty descobriu o corpo subjetivo, mas um corpo subjetivo intencional e não viu que essa concepção deixa na sombra uma dimensão de uma outra ordem que é a dimensão patética. Ora a nossa corporeidade é fundamentalmente patética.

 

Você acaba de evocar o movimento, o esforço, a forma pura do movimento. O que dizer da dança e da voz?

 

Kandinsky mostrou que a dança não tinha que ser mimética. A dança não é figurativa, ela não representa nada, mas tem a ver com o movimento do corpo e com as suas potencialidades. Aquilo que ela vai expressar são as capacidades motoras do corpo, os poderes do corpo tal como eu os vivo originariamente.[23] Daí a ideia de uma dança abstrata nos escritos de Kandinsky. A dança não conta uma história, ela desvela poderes ao dá-los a sentir ao espectador em seu próprio corpo. Assim como as formas do quadro me fazem sentir as forças que me habitam, com as quais me confundo.

O mesmo se passa com a voz. Em Maine de Biran[24], há uma atividade de «fonação» como há a visão, trata-se de um poder situado no corpo. Há uma respiração subjetiva. Nessa atividade de fonação que é da mesma ordem do que a atividade de pegar é um poder subjetivo que se desenvolve. De seguida represento-o. Quando solto um grito ou quando pronuncio certas palavras produz-se um fenómeno de redobramento, nesse sentido em que oiço eu mesmo esse grito ou essas palavras. Para Maine de Biran, apenas posso saber que oiço o grito que soltei por que sou primeiro o poder que profere o som. Por isso a audição é com efeito um redobramento. Há como que um circuito que faz com que eu oiça o som que eu proferi. Há uma expansão sonora, um som que oiço, mas para saber que sou eu quem fala e não você é preciso que haja em mim esse saber primordial, dinâmico, patético da fonação, poder com o qual coincido. É por que eu sei, sei aí onde se forma o som, que sou eu quem o forma, que há uma ipseidade nesse poder e que eu posso dizer: «Fui eu quem disse isso e não você.»

 

Tudo o que se produz no corpo estaria então na origem da arte?

 

Sim, absolutamente. A teoria da pintura de Kandinsky é válida para todas as artes, é o que faz com que as artes possas comunicar entre si e que pode haver aí uma arte global, ou como digo uma «arte monumental», isto é uma arte que não seria apenas a pintura, a escultura, a dança ou a decoração. Na ópera, por exemplo, estamos em presença de uma arte em que intervêm o canto, as cores, os decores, os movimentos das personagens, etc. Os elementos de cada uma dessas artes parecem diferentes: a voz para a cantora, a cor para as roupagens e adornos, o movimento para os deslocamentos das personagens, o texto para o libreto. Mas essas artes diferentes cujos elementos parecem diferentes podem dizer a mesma coisa porque o seu conteúdo subjetivo é o mesmo. Há um denominador comum que é a realidade subjetiva do elemento de cada arte. Objetivamente, cada elemento é diferente, mas subjetivamente ele é o mesmo. Pode fazer-se concorrer a artes diferentes um mesmo efeito, fazer expressar um mesmo pathos. Há então uma espécie de unidade subjetiva, absolutamente fantástica, de elementos objetivos.

 

Se fenomenologicamente o corpo é a fonte de toda a estética pode dizer-se que a temporalidade do corpo, isto é, o horizonte de espera do envelhecimento e, por isso, da finitude e da morte, seria o referente último de toda a arte? Em última instância, toda a ontologia estética não será uma ontologia do tempo?

 

Aqui a minha resposta é muito precisa, ela é negativa. Porquê? O tempo fenomenológico, o tempo que Husserl e Heidegger estudaram, é ainda um tempo ek-stático, isto é um tempo partido. O horizonte, esse buraco de luz que é o mundo, é um horizonte distante. É um horizonte irreal, tridimensional, isto é, constituído pelo que Heidegger chama três ek-stases e que são o futuro, o presente e o passado. Nesse horizonte ak-stático as coisas fluem do futuro para o presente e para o passado. Heidegger di-lo literalmente: a presença presentifica-se a partir de três ek-stases due fazem com que as coisas estejam aí na sua vinda ao presente, a partir do horizonte do futuro e no deslizar para o passado. Esse horizonte do futuro, para o humano, é limitado pela morte. E é isso que o leva a dizer o que você disse. Ora tudo isso apenas diz respeito à fenomenalidade ek-stática. A temporalidade da vida, essa é totalmente diferente. E por consequência, você não pode mais dizer o que disse pois a temporalidade da vida não é ek-stática. Claro que, a vida se projeta sem cessar para o seu futuro e para o seu passado, mas é a vida no mundo, que se representa no mundo, que se lança nele. A vida em si mesma, todavia, no lugar em que se toca a si mesma, não está no tempo ek-stático. O vivo é algo que se toca a si, sem distância alguma, sem de modo nenhum diferir de si, que se prova a si mesmo em sentido radical. O nosso eu vivo, nosso Si transcendental, jamais se separa de si. Foi o que eu procurei fazer. É preciso descrever uma temporalidade sem intencionalidade, um simples devir afetivo. A vida não cessa de ser experienciada, ainda que as modalidades dessa prova não cessem de se transformar.

 

Mas não é com a morte que embatemos?

 

Não, não há morte, justamente. Não há morte ou então será preciso falar de outro modo, é preciso trabalhar com uma filosofia totalmente diferente. Porque o encosto da morte é o encosto /muro perante mim no mundo. É preciso que eu pense o mundo para que eu pense a morte. Digo para mim: estou velho, talvez em seis meses ou mais tarde morrerei. Mas raciocina-se então no ek-stase. Ora aí onde há a vida, em sua essência interior, não há mais ek-stase, nem passado nem futuro. É difícil de compreender, mas certos autores tiveram essa intuição. Por exemplo Mestre Eckhart quando diz: «Aquilo que se passou ontem está tão longe de mim como o que se passou há quinze mil anos.» Isso mostra que não há uma relação entre mim e o tempo, o tempo ek-stático, não há medida da distância….

 

 

 

[1] Entrevista com M. Huhl e J.-M. Brohm, Prétentaine nº 6; reed. PUF, PV, T. III, pp. 283-308 – Texto cuja tradução serve apenas para o curso. A leitura pode e, se possível, deve ser acompanhada do original enviado como documentação auxiliar.

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[2] Martin Heidegger «L’origine de l’oeuvre d’art» in Chemins qui ne mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1992, pp. 43 e 47.

[3] Martin Heidegger, Être et temps, Paris Gallimard, 1986. (Michel Henry tinha por hábito citar as traduções francesas, mesmo que as suas fontes fossem o original, como pode ver-se nas obras por ele anotadas e que fazem parte do espólio do Fonds Michel Henry, Louvain, Bélgica).

[4] Emmanuel Kant, Critique de la raison pure, Paris, PUF, 1993.

[5] Jean-Marie Brohm, «Philosophies du corps: quel corps?» in Encyclopédie philosophique universelle, t. 1: L’Univers philosophique, Paris, PUF, 1989.

[6] Michel Henry, C’est moi la verité. Pour une philosophie du christianisme, Paris, Le Seuil, 1996.

[7] Wassily Kandinsky, Du spirituel dans l’art et dans la peinture en particulier, Paris, Denoël, 1954; Point-Ligne-Plan, Paris, Denoël, 1970; Regards sur le passé, Paris, Hermann, 1974. Michel Henry, Voir l’invisible. Sur Kandinsky, Paris, François Bourin, 1988.

[8] Michel Henry, Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990, p.7.

[9] Roman Ingarden, Qu’est-ce qu’une œuvre musicale ?, Paris, Christian Bourgois, 1989.

[10] René Descartes, Méditations métaphysiques, Paris, PUF, 1996.

[11] Arthur Schopenhauer, “De la métaphysique de la musique”, in Le Monde comme volonté et comme representation, Paris, PUF, 1966, p.1198-1200.

[12] Søren Kierkegaard, Les miettes philosophiques, Paris, Le Seuil, 1996, p.103-122; Michel Henry, La Barbarie, Paris, Grasset, 1987, p.218 (rééd., Paris, PUF, 2001).

[13] Michel Henry, Phénoménologie matérielle, op. Cit., p.9-10.

[14] Friedrich Nietzsche, La généalogie de la morale, Paris, Gallimard, 1997.

[15]Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945; Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 1964.

[16] Emmanuel Levinas, “La morte d’autri et la mienne” et “Une autre pensée de la mort: à partir de Bloch”, in La mort et le temps, Paris, Le Livre de Poche, 1992, p 19 et 109, où sont cités L’essence de la manifestation et Marx.

[17] Michel Henry, L’essence de la manifestation, Paris, PUF, 1963 (rééd., 1990).

[18] Jean-Paul Sartre, L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, 1943.

[19] Michel Henry, C’est moi la Vérité. Pour une philosophie du christianisme, Paris, Seuil, 1996.

[20] Edmund Husserl, Logique formelle et logique transcendantale. Essai d’une critique de la raison logique, Paris, PUF, 1957.

[21] Edmond Husserl, Leçon pour une phénoménologie de la conscience intime du temps, Paris, PUF, 1964.

[22] Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l’ontologie biranienne, Paris, PUF, 1965 (rééd., 1997).

[23] Michel Henry, Voir l’invisible. Sur Kandinsky, Paris, François Bourin, 1988.

[24] Main de Biran, Mémoire sur la décomposition de la pensée, in Œuvre, t.IV, Paris, Alcan, 1932 (éd. Tisserand).